A vida abundante de Svalbard, o arquipélago ártico da Noruega, enfrenta derretimento gradual.
Cinco minutos passados da meia-noite em Svalbard: o mundo selvagem está desperto e faz muito barulho. No limite de um estuário no Adventdalen, um vale em um aglomerado de ilhas a meio caminho da Noruega e do polo Norte, um bando de andorinhas-do-mar-árticas voam na luz diurna perpétua. Elas estão agitadas. Um par de gaivotas-hiperbóreas - ladras de ovos, as predadoras aladas mais formidáveis do Ártico - aproxima-se pelo leste. As andorinhas preparam defesa ferrenha. Exibem o bico vermelho para as gaivotas e se transformam em uma nuvem afiada. O truque funciona. As gaivotas passam pelas andorinhas e avançam terra adentro, passam por um par de patos eider-edredão que fazem ninho no solo, por um canil de cães puxadores de trenó e por uma rena solitária que se alimenta na tundra. É uma noite típica de verão em Svalbard, um refúgio totalmente atípico no alto Ártico que apresenta gama abundante e extraordinária de vida selvagem. Poucos lugares na região circumpolar são capazes de se equiparar à área em densidade biológica. Ursos polares proliferam aqui. Aproximadamente a metade dos 3 mil ursos da população do mar de Barents cria seus filhotes nas ilhas isoladas do arquipélago, e os seres humanos são acautelados a não se aventurar além dos limites da cidade sem uma espingarda para se protegerem do Ursus maritimus. Aves marinhas migram para Svalbard aos milhares. Cinco espécies de focas e 12 tipos de baleia se alimentam nas águas próximas a seu litoral. Morsas atlânticas prosperam com o rico sortimento de mariscos ao longo das águas rasas do mar de Barents. Na tundra aberta dos platôs e vales de Svalbard, renas pastam e raposas do Ártico caçam sem predadores. Para um observador humano, o terreno é duro, austero, implacável. Mais da metade do solo disponível está encapsulado em gelo glacial. Menos de 10% oferece luz e terra suficiente para dar suporte a vegetação. Em uma escalada de verão pelas encostas pedregosas do Nordenskiöldfjellet (monte Nordenskiöld), eu contei apenas sete espécies diferentes de plantas em cinco horas - e as que eu vi se agarravam a uma existência tênue, apertadas entre placas de pedra quebrada como proteção, como ermitões em um deserto. Anos atrás, quando o arqueólogo dinamarquês Povl Simonsen considerou os limites da sobrevivência humana no norte extremo, ele falou da "linha do possível". Durante a maior parte de sua história, Svalbard existiu além dessa linha. Civilizações antigas nunca chegaram até aqui. Os vikings não colonizaram a área. Os inuits ficaram longe. Mesmo hoje, quando os turistas podem desfrutar de voos diários de Oslo, apenas 2,5 mil pessoas vivem aqui o ano todo, muitas delas empregadas das minas de carvão de Svalbard. O inverno traz a escuridão perpétua. Mas, para um número seleto de espécies, Svalbard funciona como berço de vida extraordinário. E o segredo do lugar não está na terra. As forças de comando em Svalbard são a água, a luz e a temperatura. Aqui, a máquina biótica é alimentada pela Corrente do Golfo, que sobe pela costa leste dos Estados Unidos. Se você pegasse uma carona no entroncamento principal da Corrente do Golfo, a Corrente do Atlântico Norte, até o fim dele, acabaria na Corrente West Spitsbergen, próxima ao litoral de Svalbard. Ali, a corrente quente e salgada (apesar de o termo "quente" ser bem relativo com a temperatura de 5,5ºC) mantém a água praticamente livre de gelo e enormes quantidades de plâncton se proliferam ali a cada primavera. O plâncton atrai baleias e enormes cardumes de Mallotus villosus e de Boreogadus saida, que fornecem alimento para aves marinhas e focas. A abundância de focas, por sua vez, mantém os ursos polares de Svalbard alimentados. Ursos adultos consomem uma quantidade enorme de gordura de foca - principalmente de foca-anelada e de foca-barbuda. Esse alimento produz a energia necessária para manter o corpo enorme dos ursos (os machos costumam pesar 590 quilos, as fêmeas, a metade disso) em movimento por uma área que pode cobrir de 155 quilômetros quadrados a 370 mil quilômetros quadrados. As águas ricas em energia próximas ao litoral também atraem infusão anual de aves marinhas. Todo mês de maio e junho, quando o gelo encolhe e a tundra fica livre de neve, mais de três milhões de aves se dirigem a Svalbard. Os números são vastos, mas não a variedade. Apenas cerca de 28 espécies são consideradas comuns ou abundantes, e apenas uma - o lagópode-branco de Svalbard - é capaz de sobreviver no local o ano todo. As aves migram para cá em busca da reprodução segura e do banquete ininterrupto. Um desvio geológico faz com que a coisa toda funcione. Em alguns pontos, a linha do litoral de Svalbard se ergue do mar em penhascos quase verticais. Mas não são paredões lisos. As encostas contém milhões de protuberâncias rochosas largas o suficiente para dar suporte a um ninho, mas com frequência precárias demais para predadores como a raposa do Ártico.É um ambiente perfeito para a reprodução. Pares de fulmares-glaciais, araus de Brünnich e gaivotas-tridáctilas, às vezes misturados na mesma encosta, ocupam uma pedra durante toda a temporada e criam seus filhotes com frutos do mar disponíveis logo ali ao lado, em oferta durante as 24 horas de cada dia do verão sem noite. Quando os pássaros tomam conta de uma encosta, a transformação pode ser profunda. Certa vez, quando navegava a bordo de uma antiga traineira de pescaria ao redor de um fjord interno de Spitsbergen, ergui os olhos e enxerguei uma leve poeira de neve em um penhasco cinzento. Ao observar a cena mais de perto com binóculo, percebi que aquilo não era neve. Era a mistura de milhares de gaivotas-tridáctilas fazendo ninho em protuberâncias de pedra da encosta. A cabeça branca delas criava um efeito pontilhado a quilômetros de distância. Por mais impressionantes que as aves de verão de Svalbard sejam, elas são um tipo de aproveitadoras da natureza: vão para lá quando tudo está bom e somem quando fica ruim. Quando chega setembro, a maior parte delas voa para o sul. É difícil não reservar respeito para os habitantes de Svalbard que ficam lá o ano inteiro. Cada um deles parece empregar uma entre duas estratégias comuns para sobreviver ao inverno brutal do Ártico: continuar caçando ou fazer uma reserva extra de energia. O mestre da primeira tática é o urso polar, é claro, que passa boa parte do inverno rodeando buracos de respiração de focas, esperando o jantar vir à tona. A raposa do Ártico emprega estratégia híbrida. Continua caçando com sua camuflagem de pelo branco, mas, quando a situação aperta, recorre a estoques de alimento preparados meses antes. Em regiões mais temperadas, a reputação da raposa por suas matanças - ela enlouquece no galinheiro e mata muito mais aves do que é capaz de comer - lhe valeu a inimizade dos fazendeiros, mas, aqui, matar a mais para fazer estoque geralmente significa a diferença entre vida ou morte. Tanto para renas quanto para lagópodes-brancos, armazenar energia extra significa uma coisa: engordar. Observar uma rena pastando à meia-noite em Svalbard é presenciar um acontecimento extraordinário. A rena aqui, assim como o lagópode, deixa para lá os ritmos noturnos que governam a vida da maior parte dos animais. Elas comem e comem e comem, então descansam um pouco, e daí comem um pouco mais, independentemente da hora do dia. A rena forma camada de gordura que pode chegar a dez centímetros. Quando o alimento escasseia no inverno, a gordura funciona como reserva de energia da rena. Os sobreviventes selvagens de Svalbard descobriram como se adaptar a grande escuridão do Ártico, ao frio cortante e à vegetação rala. Mas existe uma mudança que chegou rápido demais para dar tempo à mudança evolucionária: os seres humanos. Entre os séculos 17 e 19, caçadores de baleia navegaram até Svalbard para caçar os poderosos cetáceos da região, cuja grossa camada de gordura podia ser transformada em óleo de baleia e, em última instância, em belos lucros. Em uma viagem a Svalbard em 1612, o capitão de um navio holandês relatou que o mar de Barents era tão cheio de baleias que a proa do navio cortava os animais ao meio como se estivesse abrindo caminho pelo gelo. No final do século 18, o apetite insaciável do mundo por óleo de baleia quase tinha acabado com elas. Cerca de 50 mil baleias-da-groenlândia, o mamífero mais longevo do planeta, foram abatidas só por embarcações holandesas. A carnificina comercial quase levou a espécie à extinção. (Hoje, mais de dez mil baleias-da-groenlândia sobrevivem, em sua maior parte nos mares de Bering, Chukchi e Beaufort.) Depois de aproveitar bem as baleias, os caçadores voltaram a atenção para as morsas - devido às presas de marfim - e também quase acabaram com essa espécie também. No final da Primeira Guerra Mundial, o Tratado de Svalbard Treaty deu à Noruega a soberania sobre o arquipélago, cujos recursos também eram cobiçados pela Suécia e pela Rússia. O tratado acabou sendo um ponto de virada. No decurso do século 20, o governo norueguês acabou com o acesso irrestrito e transformou uma das maiores áreas de matança de animais selvagens do mundo em um de seus santuários mais protegidos. Hoje, cerca de 65% das ilhas de Svalbard e 75% de suas áreas marinhas pertencem a parques nacionais ou reservas naturais. Uma coisa notável acontece quando se fornece hábitat e paz aos animais. Eles proliferam. A população de morsas de Svalbard, que contava com algumas poucas centenas de animais na década de 1950, recuperou-se para mais de 2,6 mil em 2006. Na década de 1920, apenas mil renas pastavam nos vales. Hoje, alguns especialistas acreditam que haja número tão grande quanto 10 mil delas. O tempo da matança desenfreada se foi, mas os seres humanos continuam a pressionar a vida selvagem de maneiras indiretas. Toxinas como compostos bifenilpoliclorados e perfluorinados chegam até Svalbard pelo ar e nas correntes oceânicas e penetram no tecido gorduroso de gaivotas-hiperbóreas, mandriões-grandes, raposas do Ártico e focas aneladas, comprometendo o sistema imune dos animais. Ursos polares exibem níveis muito mais altos desses poluentes do que seus pares do Alasca e do Canadá. Ao mesmo tempo, as mudanças climáticas forçam retração da cobertura de gelo no verão, o que representa ameaça aos ursos polares da região. A vida selvagem que prolifera aqui se adaptou a um dos hábitats mais severos da Terra. Com o aumento da temperatura, aves, peixes e mamíferos serão forçados a se adaptar ainda mais. Talvez haja motivo de esperança nas maneiras curiosas como a vida selvagem de Svalbard já se ajustou aos seres humanos, o predador que se transformou em protetor. No posto avançado de mineração de carvão de Barentsburg, dúzias de gaivotas-tridáctilas transformaram construções abandonadas em penhascos de pássaros improvisados, fazendo seus ninhos no peitoril das janelas. À meia-noite ou ao meio-dia - não faz diferença para os pássaros - os pais saltam dos peitoris para mergulhar atrás de cardumes de peixes no porto lá embaixo. A sua própria maneira discreta, as gaivotas estão expandindo a linha do possível de janela em janela. É criativo mas, para Svalbard, nada fora do comum. Aqui, a oportunidade e a abundância costumam aparecer em locais improváveis.
REVISTA NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL OUT/2009
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