sexta-feira, 26 de março de 2010

Outro Saara...

No coração do Saara, a água da chuva que caiu há milênios empoça na cratera vulcânica de Waw na Namus. Ventos carregaram as cinzas da última erupção por 20 quilômetros.


Uma rara vista aérea da região líbia do Fezzan, em que antigas sociedades florescem e desaparecem assim como o vaivém das chuvas.
Por Charles BowdenFoto de George Steinmetz
Um vento milenar sopra des-de as profundezas do tempo. O Saara nos impacta como um inferno perene de dunas sob o céu azul. Suas paisagens nos deslumbram, mas nada indica que estamos diante de um dos maiores depósitos de registros geológicos da Terra. O passado sobrevive ali e nos fala através da areia, das pedras, do calor e dos ventos secos. Sussurra em nossos ouvidos uma história de mudanças climáticas ocorridas aos trancos e solavancos, bem como do avanço e do recuo da humanidade. David Mattingly lidera um time de pesquisadores do Projeto sobre Migrações no Deserto, cujo trabalho nos remete à pré-história. São viajantes do tempo a navegar pelo Saara em busca de vestígios dos nossos antepassados. Eles conquistam dunas com mais de 30 metros de altura e abrem novos caminhos para se apreciar esse deserto. No sudoeste da Líbia, uma região conhecida com Fezzan é o coração palpitante do Saara, um lugar inacessível, repleto de mares de areia, wadis (leitos de rios intermitentes no norte da África), montanhas, platôs, oásis e mistério. Entre 500 a.C. e 500 d.C., estima-se que cerca de 100 mil pessoas viveram da terra ali, em uma área que costuma receber só alguns milímetros de chuva por ano - quando recebe. "É muita gente para os padrões da paisagem hiperárida do Saara central", diz Mattingly. Arqueólogo da Universidade de Leicester, ele tornou-se um escravo do deserto. "Trabalho na Líbia há 30 anos e desde logo fiquei maravilhado com as paisagens." Muitos partilharam da mesma sina. As pessoas ficam viciadas na luz brilhante e nos horizontes limpos. Onde muitos veem um vazio sem fim, outros enxergam a claridade. Se recuarmos até o período entre 1822 e 1825, flagraremos o explorador escocês Hugh Clapperton mergulhado no deserto a sudoeste da Líbia. Em 7 de novembro de 1824, atravessando a secura do chão, Clapperton topa com uma escrava abandonada "para perecer no deserto hoje, com uma cabeça inchada - incapaz de andar - sem reações". Ele encontra um dos criados do amo encolhido ao lado da mulher, "esperando ali pela morte dela, não para enterrá-la, mas para se apoderar dos escassos andrajos que a cobriam". Ela não consegue montar um camelo, está fraca demais. O explorador acha que não deve se demorar ali para não morrer também. O vento é frio, ele observa. E toca em frente. Esse é o Saara dos horrores. Um mar ressecado de areia e pedra, infestado de escorpiões, em que víboras serpenteiam sob um sol inclemente. A Líbia é grande, do tamanho de Itália, França, Espanha e Alemanha juntas. E quase todos os seus 6 milhões de habitantes vivem na costa do Mediterrâneo. Para entender-se a região, devemos dar as costas ao mar e mirar o sul. Noventa e cinco por cento da Líbia são desertos, 20% são dunas e nenhum rio perene passa por ali. O Saara líbio detém o recorde mundial de calor (57,8ºC) e é capaz de gelar os ossos de uma pessoa em uma noite de inverno. Ibrahim al-Koni, o maior romancista do país, foi criado como tuaregue no Fezzan. Em seu livro A Pedra Que Sangra, ele cita uma canção sufi:
O deserto é um verdadeiro tesouro para quem busca refúgio dos homens, da maldade dos homens. Nele há contentamento, nele há morte e tudo que procuras. O Fezzan revela milhares de anos de uma luta da vida contra a mudança, de seres humanos adaptando-se ao meio hostil. É uma máquina do tempo que faz o passado esbofetear nossa cara. Nós, modernos, admitimos com relutância que o passado é a história de mudanças climáticas, de grandes migrações, de ascensão e queda de nações. Mesmo assim, agimos como se nosso presente fosse o capítulo final. No Saara, porém, qualquer visitante se confronta com uma história longa demais a nos lembrar de que o atual capítulo é tênue e frágil.
As investigações de Mattingly levam-no até o Mar de Areia de Ubari, onde, por incrível que pareça, há muitos laguinhos da cor de pedras preciosas, alguns púrpura, outros alaranjados, por causa dos minerais e das algas. Eles são a lembrança quase desidratada de uma época anterior, quando o lençol freático corria mais próximo da superfície que hoje. É difícil imaginar, mas um lago do tamanho da Inglaterra, o Megafezzan, existiu ali há cerca de 200 mil anos, quando chuvas eram abundantes e, como provam os antigos canais, os rios corriam pelo centro do deserto. As mudanças climáticas têm ocorrido feito um interruptor que liga e desliga no Saara. No tempo seco, os lagos minguavam e a vegetação reduzia-se a nichos. Então, quando dias mais úmidos retornavam, os lagos se enchiam e partes do Saara viravam savana. Comunidades humanas pulsaram por lá como uma explosão de plantas depois de uma chuva rara. Nas eras úmidas, prosperavam. Nas secas, encolhiam ou se extinguiam. Com base em imagens de radar, Kevin White e Nick Drake, membros da equipe do Projeto de Migrações, mapearam a localização de resíduos minerais de antigos lagos e nascentes. Depois, os paleoantropólogos Robert Foley e Marta Mirazón Lahr descobriram artefatos de pedra, pontas de flecha, indícios de fogueiras, túmulos. Os mais antigos seres humanos na região eram caçadores e coletores que viviam em uma savana há cerca de 130 mil anos. Esse povo foi sumindo à medida que as chuvas começaram a rarear, 70 mil anos atrás. Quando as chuvas voltaram, as pessoas também retornaram. Riscadas nas pedras do deserto estão as memórias de um Saara mais úmido, quando criaturas dependentes de água, como leões, elefantes e rinocerontes, viviam ali. Algo curioso ocorreu quando a mais recente fase úmida terminou. Há cerca de 5 mil anos, as chuvas cessaram de novo, os lagos desapareceram e o deserto venceu. Dessa vez as pessoas permaneceram. A arte rupestre registra a transição da caça ao pastoreio. Na sequência surgiu uma sociedade que começaria a construir cidades e daria início à agricultura: a civilização garamante. Os garamantes floresceram ali em um clima bem parecido com o do Saara de hoje. Estudiosos achavam que eram nômades do deserto. Mas escavações no sítio em que ficava Garama, sua capital - e onde hoje se ergue Jarmah -, além de sondagens no terreno feitas pela equipe de Mattingly, revelaram que era um povo sedentário, que vivia de agricultura de oásis. Eles construíram um sofisticado sistema de irrigação que lhes permitia plantar trigo, cevada, sorgo, tâmara e azeitona. Canais subterrâneos - chamados de foggaras - levavam a água dos lençóis freáticos aos campos. Quase mil quilômetros desses canais ainda podem ser detectados. O sistema funcionou bem por centenas de anos. Até que a água "fóssil", armazenada nas épocas chuvosas, começou a desaparecer. E a civilização teve fim. O Saara parece uma barreira à primeira vista, dividindo a África em dois pedaços. Mas, para os seres humanos que viveram na Líbia por milhares de anos, era um corredor. Ouro, marfim e escravos chegavam ao norte vindos da África subsaariana. Azeite de oliva, vinho, vidros e outros produtos do Mediterrâneo rumavam para o sul. O comércio criou uma imagem duradoura em nossa cabeça: a caravana trilhando seu caminho por imensas dunas. O corredor do Saara pode ter sido uma das passagens usadas por nossos ancestrais ao deixarem a parte oriental do continente para povoar o resto do mundo. Estudiosos sustentam que os primeiros seres humanos se expandiram para além da África subsaariana rumo à Eurásia, migrando tanto ao longo do rio Nilo quanto através do Sinai ou do mar Vermelho. Agora outra hipótese está sendo explorada: a de que o Fezzan pode ter feito parte de um longo corredor migratório por onde alguns seres humanos modernos chegaram ao litoral do Mediterrâneo e, a partir dali, cruzaram o Sinai. Talvez ao cruzar esse mar de areia, nossos ancestrais tenham caminhado pelo Great Rift Valley, ou, literalmente, o "Vale da Grande Fenda", uma depressão de aproximadamente 6 mil quilômetros de extensão que rasga o território de vários países africanos. E o resultado é sermos quem somos hoje. Mattingly diz que gosta da arqueologia porque "ela traz lições aos dias de hoje". Mil e quinhentos anos após o declínio dos garamantes, o governo líbio está construindo o "Grande Rio Feito pelo Homem", uma série de imensos aquedutos que fará minar antigas reservas de água subterrânea existentes debaixo do Saara, água que será usada para fazer o deserto brotar. A água que está sendo bombada se depositou ali dezenas de milhares de anos atrás, em tempos bem mais úmidos. O lençol d’água já declina por causa do bombeamento. O projeto tem uma vida estimada de apenas 50 ou 100 anos, um piscar de olhos nessa região. O último capítulo do Fezzan ainda está por ser escrito.

Nota do professor: Nada melhor que viajar e conhecer cada pedaçinho do mundo...quem diria que o Saara podeiria dar esse espetáculo...

National Goegraphic Brasil Out/2009

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