quarta-feira, 23 de junho de 2010

As lições do abismo

A extração de petróleo no mar nunca mais será a mesma, apesar do aparente sucesso da última e desesperada tentativa de deter o vazamento no Golfo do México. E isso vale também para o pré-sal brasileiro


A exploração de petróleo no fundo do mar nunca mais será a mesma depois do desastre na plataforma de extração Deepwater Horizon, no Golfo do México. Desde a explosão inicial, no dia 20 de abril, o mundo se viu diante de uma situação inédita: um vazamento submarino sem solução. Tudo parecia dar errado com a Deepwater Horizon, situada a 60 quilômetros da costa do estado americano da Louisiana. Primeiro, a válvula que deveria controlar o fluxo de petróleo falhou, causando a explosão e o rompimento das tubulações no solo do oceano. Todas as tentativas de conter o vazamento fracassaram. Experimentou-se tapar as rachaduras nos canos com a ajuda de robôs submarinos. Não funcionou. Depois, instalou-se uma cúpula de contenção para sugar o petróleo que escapava dos canos. Também não deu certo. Só na madrugada de sexta-feira passada se conseguiu conter a sangria de petróleo no oceano, com uma técnica chamada top kill, que consiste em introduzir um tipo de lama especial nas tubulações (veja o quadro). Mesmo assim, seria preciso esperar até domingo para ter certeza do sucesso dessa última e desesperada tentativa. O saldo da tragédia até agora foram o vazamento de 148 milhões de litros de petróleo, quantidade equivalente a um terço do consumo diário do Brasil, e uma séria questão para o futuro: como mudar as operações para tirar petróleo do fundo do mar sob a luz das lições científicas, empresariais, legais, políticas e ambientais extraídas do desastre na Deepwater Horizon.
A exploração de petróleo em profundidade oceânica superior a 1 000 metros, chamada de prospecção em águas profundas, ocorre em larga escala há apenas duas décadas. Hoje, 6% do petróleo produzido no mundo provém de poços com essas características e estima-se que essa porcentagem dobre nos próximos vinte anos. Ou, pelo menos, era a essa a previsão até o vazamento no Golfo do México. Embora a plataforma Deepwater Horizon fosse uma das mais avançadas do ponto de vista tecnológico, engenheiros e técnicos não foram capazes de impedir que a explosão inicial se convertesse no pior desastre desse tipo já ocorrido nos Estados Unidos. A falha da válvula de segurança da plataforma e os repetidos fiascos nas tentativas de estancar o vazamento de petróleo mostram que a prospecção em alto-mar é uma empreitada que envolve riscos elevados demais para quem trabalha na operação e também para o ambiente.
Os desdobramentos políticos e legais do desastre do Golfo nos Estados Unidos dão indícios do que pode ocorrer com a exploração submarina de petróleo daqui para a frente. Semanas antes da explosão da Deepwater Horizon, o presidente americano Barack Obama havia proposto a ampliação da prospecção em águas profundas como forma de atender ao aumento crescente da demanda por energia no país, sem depender do fornecimento externo, cuja maior parte está em mãos de figuras indignas de confiança, como o venezuelano Hugo Chávez. Os Estados Unidos são o país que mais consome petróleo – mais de 3 bilhões de litros por dia. Na quinta-feira passada, numa reviravolta, Obama suspendeu a perfuração de 33 poços no Golfo do México e dois no Alasca. Ele também vetou novas permissões de perfuração nos próximos seis meses – a exploração pela Petrobras de dois campos no Golfo do México, Cascade e Chinook, está vetada. A questão em aberto é como foi possível a sequência de erros no acidente do Golfo do México. O governo espera que neste período seja possível estabelecer novos procedimentos de segurança para evitar tragédias desse tipo.
Na sexta-feira, Obama visitou a região do desastre pela segunda vez e assumiu total responsabilidade pela recuperação da área afetada. O discurso penitente não chegou a ser um alívio para o presidente americano. Em pesquisas realizadas na semana passada, 45% dos entrevistados desaprovaram as medidas adotadas. A oposição republicana já chama o desastre do Golfo do México de "o Katrina de Obama". Em 2005, a demora no socorro às vítimas do furacão Katrina, que devastou a cidade de Nova Orleans, também na Louisiana, estraçalhou a imagem do então presidente George W. Bush. Se depender do Congresso dos EUA, as consequências legais que recairão sobre as empresas responsáveis por acidentes que causam vazamentos de petróleo levarão esse tipo de delito a um patamar infinitamente mais alto. As três empresas envolvidas no acidente do Golfo do México – a British Petroleum, que detinha os direitos da exploração do campo, a Transocean, dona da plataforma, e a empreiteira Halliburton – poderão pagar uma multa de 75 milhões de dólares. Na semana passada, os senadores americanos anunciaram que querem propor o aumento da multa para 10 bilhões de dólares.
O Brasil, obrigatoriamente, terá de prestar atenção nas lições do desastre no Golfo do México. O país extrai do oceano 90% do petróleo que produz. São 826 poços marítimos, 200 deles em águas profundas. A exploração e o transporte de petróleo já provocaram vários acidentes no litoral brasileiro. Em 2000, um vazamento na refinaria Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, espalhou 1,3 milhão de litros por 50 quilômetros quadrados na Baía de Guanabara. Em 1984, um incêndio causado por vazamento de gás na plataforma de Enchova, na Bacia de Campos, resultou na morte de 37 pessoas. Também na Bacia de Campos, em 2001, a explosão da plataforma P-36 matou onze pessoas. Diz Wilson Iramina, do departamento de engenharia de minas e de petróleo da Universidade de São Paulo: "É preciso que haja bom senso da Agência Nacional de Petróleo, da Petrobras e de todas as operadoras para fixar regras de segurança que evitem ao máximo acidentes como o do Golfo. Um bom início seria que esses órgãos estabelecessem um acordo de responsabilidade para, em caso de acidente, não ficar um empurrando a culpa para o outro".
Os desafios tecnológicos e relativos à segurança se tornarão exponencialmente maiores no Brasil quando começar a exploração comercial do petróleo localizado na camada pré-sal do oceano. Nunca se extraiu petróleo de uma profundidade tão grande. Para chegarem ao reservatório de petróleo, os dutos e as sondas de perfuração precisarão atravessar 2 quilômetros de oceano (média de profundidade da água na Bacia de Santos), 1 quilômetro de rocha (camada pós-sal) e mais 2 quilômetros da camada de sal, até chegar, então, ao pré-sal. A temperatura onde se localiza a camada pré-sal pode atingir 100 graus. O calor, aliado à alta pressão, faz com que as propriedades das rochas se alterem, amolecendo-as. Isso dificulta a perfuração porque, se o poço não for revestido de concreto rapidamente, ele se fechará. A grande vantagem do petróleo do pré-sal é ser do tipo leve, assim como o do Oriente Médio. O petróleo extraído atualmente no Brasil, bem como o da Venezuela, é do tipo pesado, de menor valor de mercado. Prestes a entrar na era do pré-sal, é preciso que o Brasil se posicione também na era pós-vazamento no Golfo do México.
Vitória da natureza
O vazamento de petróleo no mar é um dos mais frequentes – e também um dos piores – desastres ambientais de nossos dias. Na relação das tragédias dos anos 80, o derramamento de óleo no Alasca pelo petroleiro Exxon Valdez é equiparado à explosão do reator nuclear de Chernobyl. O acidente matou 250 000 aves e mamíferos, segundo uma estimativa que não incluiu peixes nem outras criaturas das profundezas. Quando o petróleo se espalha pela superfície da água, 30% dele se evapora naturalmente em dois dias. Nesse meio-tempo, o material restante inicia uma cadeia calamitosa de eventos. Na superfície, a massa negra inibe a fotossíntese dos fitoplânctons, organismos microscópicos que são a base da cadeia alimentar marinha. Quando afunda, vai matando algas, peixes, moluscos e corais até cobrir o leito do oceano com uma camada impermeável. O efeito é igualmente devastador se o óleo atinge áreas de mangue, que são os berçários da vida no mar. Quando o petroleiro Aegean Sea espalhou 72 milhões de litros de petróleo no norte da Espanha, a pesca na costa mais rica em frutos do mar do país ficou suspensa por um ano.
Os estragos, felizmente, não são permanentes. Em dez ou quinze anos, a natureza encarrega-se de restabelecer o equilíbrio ecológico perturbado pelo vazamento. Os primeiros organismos a proliferar são bactérias que vivem da decomposição do petróleo. À medida que esses microrganismos limpam a água, a cadeia alimentar é refeita. Retornam os fitoplânctons, os peixes, as aves e, por fim, os mamíferos, como botos e baleias. Vestígios dos 40 milhões de litros de petróleo derramados pelo acidente do Exxon Valdez no mar do Alasca, em 1989, só podem hoje ser detectados em análises com aparelhos científicos. No fim, a vida triunfou.
REVISTA VEJA 02/06/2010

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