quarta-feira, 23 de junho de 2010

As lições do abismo

A extração de petróleo no mar nunca mais será a mesma, apesar do aparente sucesso da última e desesperada tentativa de deter o vazamento no Golfo do México. E isso vale também para o pré-sal brasileiro


A exploração de petróleo no fundo do mar nunca mais será a mesma depois do desastre na plataforma de extração Deepwater Horizon, no Golfo do México. Desde a explosão inicial, no dia 20 de abril, o mundo se viu diante de uma situação inédita: um vazamento submarino sem solução. Tudo parecia dar errado com a Deepwater Horizon, situada a 60 quilômetros da costa do estado americano da Louisiana. Primeiro, a válvula que deveria controlar o fluxo de petróleo falhou, causando a explosão e o rompimento das tubulações no solo do oceano. Todas as tentativas de conter o vazamento fracassaram. Experimentou-se tapar as rachaduras nos canos com a ajuda de robôs submarinos. Não funcionou. Depois, instalou-se uma cúpula de contenção para sugar o petróleo que escapava dos canos. Também não deu certo. Só na madrugada de sexta-feira passada se conseguiu conter a sangria de petróleo no oceano, com uma técnica chamada top kill, que consiste em introduzir um tipo de lama especial nas tubulações (veja o quadro). Mesmo assim, seria preciso esperar até domingo para ter certeza do sucesso dessa última e desesperada tentativa. O saldo da tragédia até agora foram o vazamento de 148 milhões de litros de petróleo, quantidade equivalente a um terço do consumo diário do Brasil, e uma séria questão para o futuro: como mudar as operações para tirar petróleo do fundo do mar sob a luz das lições científicas, empresariais, legais, políticas e ambientais extraídas do desastre na Deepwater Horizon.
A exploração de petróleo em profundidade oceânica superior a 1 000 metros, chamada de prospecção em águas profundas, ocorre em larga escala há apenas duas décadas. Hoje, 6% do petróleo produzido no mundo provém de poços com essas características e estima-se que essa porcentagem dobre nos próximos vinte anos. Ou, pelo menos, era a essa a previsão até o vazamento no Golfo do México. Embora a plataforma Deepwater Horizon fosse uma das mais avançadas do ponto de vista tecnológico, engenheiros e técnicos não foram capazes de impedir que a explosão inicial se convertesse no pior desastre desse tipo já ocorrido nos Estados Unidos. A falha da válvula de segurança da plataforma e os repetidos fiascos nas tentativas de estancar o vazamento de petróleo mostram que a prospecção em alto-mar é uma empreitada que envolve riscos elevados demais para quem trabalha na operação e também para o ambiente.
Os desdobramentos políticos e legais do desastre do Golfo nos Estados Unidos dão indícios do que pode ocorrer com a exploração submarina de petróleo daqui para a frente. Semanas antes da explosão da Deepwater Horizon, o presidente americano Barack Obama havia proposto a ampliação da prospecção em águas profundas como forma de atender ao aumento crescente da demanda por energia no país, sem depender do fornecimento externo, cuja maior parte está em mãos de figuras indignas de confiança, como o venezuelano Hugo Chávez. Os Estados Unidos são o país que mais consome petróleo – mais de 3 bilhões de litros por dia. Na quinta-feira passada, numa reviravolta, Obama suspendeu a perfuração de 33 poços no Golfo do México e dois no Alasca. Ele também vetou novas permissões de perfuração nos próximos seis meses – a exploração pela Petrobras de dois campos no Golfo do México, Cascade e Chinook, está vetada. A questão em aberto é como foi possível a sequência de erros no acidente do Golfo do México. O governo espera que neste período seja possível estabelecer novos procedimentos de segurança para evitar tragédias desse tipo.
Na sexta-feira, Obama visitou a região do desastre pela segunda vez e assumiu total responsabilidade pela recuperação da área afetada. O discurso penitente não chegou a ser um alívio para o presidente americano. Em pesquisas realizadas na semana passada, 45% dos entrevistados desaprovaram as medidas adotadas. A oposição republicana já chama o desastre do Golfo do México de "o Katrina de Obama". Em 2005, a demora no socorro às vítimas do furacão Katrina, que devastou a cidade de Nova Orleans, também na Louisiana, estraçalhou a imagem do então presidente George W. Bush. Se depender do Congresso dos EUA, as consequências legais que recairão sobre as empresas responsáveis por acidentes que causam vazamentos de petróleo levarão esse tipo de delito a um patamar infinitamente mais alto. As três empresas envolvidas no acidente do Golfo do México – a British Petroleum, que detinha os direitos da exploração do campo, a Transocean, dona da plataforma, e a empreiteira Halliburton – poderão pagar uma multa de 75 milhões de dólares. Na semana passada, os senadores americanos anunciaram que querem propor o aumento da multa para 10 bilhões de dólares.
O Brasil, obrigatoriamente, terá de prestar atenção nas lições do desastre no Golfo do México. O país extrai do oceano 90% do petróleo que produz. São 826 poços marítimos, 200 deles em águas profundas. A exploração e o transporte de petróleo já provocaram vários acidentes no litoral brasileiro. Em 2000, um vazamento na refinaria Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, espalhou 1,3 milhão de litros por 50 quilômetros quadrados na Baía de Guanabara. Em 1984, um incêndio causado por vazamento de gás na plataforma de Enchova, na Bacia de Campos, resultou na morte de 37 pessoas. Também na Bacia de Campos, em 2001, a explosão da plataforma P-36 matou onze pessoas. Diz Wilson Iramina, do departamento de engenharia de minas e de petróleo da Universidade de São Paulo: "É preciso que haja bom senso da Agência Nacional de Petróleo, da Petrobras e de todas as operadoras para fixar regras de segurança que evitem ao máximo acidentes como o do Golfo. Um bom início seria que esses órgãos estabelecessem um acordo de responsabilidade para, em caso de acidente, não ficar um empurrando a culpa para o outro".
Os desafios tecnológicos e relativos à segurança se tornarão exponencialmente maiores no Brasil quando começar a exploração comercial do petróleo localizado na camada pré-sal do oceano. Nunca se extraiu petróleo de uma profundidade tão grande. Para chegarem ao reservatório de petróleo, os dutos e as sondas de perfuração precisarão atravessar 2 quilômetros de oceano (média de profundidade da água na Bacia de Santos), 1 quilômetro de rocha (camada pós-sal) e mais 2 quilômetros da camada de sal, até chegar, então, ao pré-sal. A temperatura onde se localiza a camada pré-sal pode atingir 100 graus. O calor, aliado à alta pressão, faz com que as propriedades das rochas se alterem, amolecendo-as. Isso dificulta a perfuração porque, se o poço não for revestido de concreto rapidamente, ele se fechará. A grande vantagem do petróleo do pré-sal é ser do tipo leve, assim como o do Oriente Médio. O petróleo extraído atualmente no Brasil, bem como o da Venezuela, é do tipo pesado, de menor valor de mercado. Prestes a entrar na era do pré-sal, é preciso que o Brasil se posicione também na era pós-vazamento no Golfo do México.
Vitória da natureza
O vazamento de petróleo no mar é um dos mais frequentes – e também um dos piores – desastres ambientais de nossos dias. Na relação das tragédias dos anos 80, o derramamento de óleo no Alasca pelo petroleiro Exxon Valdez é equiparado à explosão do reator nuclear de Chernobyl. O acidente matou 250 000 aves e mamíferos, segundo uma estimativa que não incluiu peixes nem outras criaturas das profundezas. Quando o petróleo se espalha pela superfície da água, 30% dele se evapora naturalmente em dois dias. Nesse meio-tempo, o material restante inicia uma cadeia calamitosa de eventos. Na superfície, a massa negra inibe a fotossíntese dos fitoplânctons, organismos microscópicos que são a base da cadeia alimentar marinha. Quando afunda, vai matando algas, peixes, moluscos e corais até cobrir o leito do oceano com uma camada impermeável. O efeito é igualmente devastador se o óleo atinge áreas de mangue, que são os berçários da vida no mar. Quando o petroleiro Aegean Sea espalhou 72 milhões de litros de petróleo no norte da Espanha, a pesca na costa mais rica em frutos do mar do país ficou suspensa por um ano.
Os estragos, felizmente, não são permanentes. Em dez ou quinze anos, a natureza encarrega-se de restabelecer o equilíbrio ecológico perturbado pelo vazamento. Os primeiros organismos a proliferar são bactérias que vivem da decomposição do petróleo. À medida que esses microrganismos limpam a água, a cadeia alimentar é refeita. Retornam os fitoplânctons, os peixes, as aves e, por fim, os mamíferos, como botos e baleias. Vestígios dos 40 milhões de litros de petróleo derramados pelo acidente do Exxon Valdez no mar do Alasca, em 1989, só podem hoje ser detectados em análises com aparelhos científicos. No fim, a vida triunfou.
REVISTA VEJA 02/06/2010

World Cup 2010 In South Africa

UMA HOMENAGEM AO PAÍS SEDE DA COPA DO MUNDO 2010 ÁFRICA DO SUL



















AGORA VAMOS VER A VERDADEIRA IMAGEM QUE AS CAMERAS NÃO MOSTRAM DURANTE A COPA DO MUNDO, A VERDADEIRA ÁFRICA QUE O MUNDO NÃO MOSTRA, OU MELHOR NÃO VENDE...



Soccer City


O novo estádio de Johanesburgo, para 94 mil espectadores, inspirado no formato de uma tradicional vasilha africana, destaca-se no perfil da cidade. Com os olhos do mundo postos no anfitrião da Copa do Mundo, os sul-africanos querem causar excelente impressão: o presidente Zuma considera 2010 o ano mais crítico desde 1994, quando acabou o apartheid.Foto de James Nachtwey

O Sonho de Xangai - A metrópole global da China tenta recuperar a glória do passado - desta vez nos próprios termos.


O World Financial Center com seus 10 andares, o prédio mais alto da China, a Jin Mao Tower e a Oriental Pearl TV Tower são marcos da ambição da cidade
O mundo secreto do antigo abrigo antibombas de Xangai parece um universo paralelo. Lá em cima, na rua ensolarada, operários migrantes devoram marmitas de arroz e tofu enquanto funcionários de escritório vestindo impecáveis camisas brancas passam diante da pequena placa na calçada. No recesso sombrio, a jovem desce por uma escada até o lugar que ela conhece apenas como "0093".
Depois de passar pelas portas de metal, a jovem de 22 anos - Sheng Jiahui, mais conhecida pelo apelido de "Sammy" - embrenha-se por corredores. Em seu perpétuo crepúsculo, o 0093 ainda evoca a claustrofobia da guerra e da revolução comunista que pôs fim ao apogeu esfuziante de Xangai, quando a mescla das culturas ocidental e oriental fez dessa cidade a Paris do Oriente.A porta abre-se e uma explosiva rajada de guitarra elétrica invade o corredor. Na pequena sala, sob um cartaz do lendário Jimi Hendrix, quatro garotas xangainesas - que formam com Sammy uma banda de punk rock, a Black Luna - começam a ensaiar. Esse é um giro curioso da história: o abrigo antibomba, antes símbolo de uma sociedade ferida e temerosa, tornou-se incubadora dos novos músicos de Xangai. O local de ensaio no 0093 já prestou bons serviços para mais de uma centena de bandas, revigorando uma cultura que hoje, como no passado, embaralha as fronteiras entre o Oriente e o Ocidente.Sammy tira o blusão enquanto as outras continuam a ensaiar. Orange, de 20 anos, martela a bateria; Juice, de 23, toca os acordes com a mesma velocidade do novo trem Maglev de Xangai. Sammy começa a cantar e seu cabelo curto sacode para cima e para baixo em ritmo acelerado. Filha de uma cantora de ópera, ela está dando novo rumo ao talento musical da família. "Somos aves recém-nascidas, mas temos sonhos", berra. "O mundo todo vai ouvir a gente cantar."Toda a cidade tem seu ritmo próprio, uma pulsação que a leva adiante. Em Xangai, é fácil perder-se em meio à incessante percussão de britadeiras e bate-estacas, tratores e guindastes de construção. A proliferação de arranha-céus e canteiros de obras faz parte da metamorfose pela qual está passando Xangai para ser a anfitriã da Expo 2010, a versão contemporânea da Feira Mundial, que será realizada de maio a outubro. Todavia, a ascensão da única metrópole chinesa de fato global está sendo impulsionada não só pelas máquinas mas sobretudo por uma cultura urbana que segue a própria batida - acolhendo o novo e o estrangeiro ao mesmo tempo que busca recuperar sua glória passada.Os nativos de Xangai formam uma tribo urbana distinta do restante da China pela língua, pelos costumes, pela arquitetura, pela culinária e pelas atitudes. A cultura local, com frequência chamada de haipai (estilo de Xangai), originou-se da história peculiar da cidade como um ponto de reunião de mercadores estrangeiros e migrantes chineses. "Para os estrangeiros, Xangai é parte da China ‘misteriosa’", explica o comediante local Zhou Libo. "Mas, para os outros chineses, Xangai faz parte do mundo externo."Xangai, ao contrário da Pequim imperial, não passava de um vilarejo de pescadores há um século e meio - mas já impregnada do sentimento de que estava destinada a um grande futuro. Era um sonho de estrangeiros, um porto para mercadores ocidentais que trocavam ópio por chá e seda.Os edifícios erguidos à beira-rio, no trecho conhecido como Bund (palavra derivada do hindi), manifestavam o poder de nações estrangeiras, não o da China. Ali desembarcavam ondas de imigrantes, criando uma exótica mescla de banqueiros britânicos e dançarinas russas, missionários americanos e grã-finos franceses, refugiados judeus e seguranças siques com turbantes.Na década de 1930, Xangai estava entre as dez maiores cidades do mundo. Mas não se parecia com nenhum outro lugar no planeta: era uma metrópole mestiça famosa pela facilidade de enriquecer - e pelos padrões morais relaxados.
Britânicos, franceses e americanos dividiam a cidade em setores próprios, erguendo belas mansões em ruas arborizadas. O comércio local exibia as modas e os produtos de luxo mais recentes. O hipódromo dominava o centro, cuja vida noturna oferecia de tudo, de salões de baile a clubes sociais, antros de ópio e bordéis. (Dizia-se que Xangai tinha mais prostitutas que qualquer outra cidade no mundo.)
A cortina finalmente baixou em 1949. Durante as quatro décadas seguintes, os mandatários comunistas empenharam-se em punir Xangai por seu papel como uma espécie de Babilônia moderna. Além de forçar ao exílio a elite econômica e suprimir o dialeto local, Pequim apropriou-se de quase todos os recursos financeiros da cidade. Quando, nos anos 1980, tiveram início as reformas econômicas no país, Xangai teve de esperar por quase uma década até que as autoridades centrais permitissem seu desenvolvimento. "A pergunta que estava no ar era: Afinal, quando vai chegar a nossa vez?", diz Huang Mengqi, um designer e empresário de moda que tem loja nos arredores do Bund.
Agora chegou a vez de Xangai. A cidade está impaciente para recuperar a glória passada, só que, desta vez, nos próprios termos. Duas décadas atrás, os edifícios no Bund fitavam, para além do rio Huangpu, uma várzea agrícola e algumas fábricas dispersas; hoje a mesma área está repleta de arranha-céus, entre os quais o World Financial Center, com 101 andares. No total, a cidade já construiu mais de 4 mil edifícios de grandes dimensões. Para um local antes dominado por riquixás e bicicletas, o dado mais extraordinário talvez não seja vertical, e sim horizontal: quase 2,5 mil quilômetros de novas ruas e estradas foram abertas - há dez anos, elas simplesmente não existiam.
A cidade já teria comprometido 45 bilhões de dólares, mais do que foi gasto nos Jogos Olímpicos de 2008, em Pequim. Boa parte desses recursos foram investidos em infraestrutura, incluindo dois novos terminais no aeroporto, a ampliação do metrô e uma reforma no Bund. Mas, dada a crise global, será possível que a Feira Mundial alcance a quantidade prevista de 70 milhões de visitantes? Xangai espera superar as rivais Pequim e Hong Kong, mas também acalenta uma ambição bem maior: tornar-se o centro financeiro e cultural do mundo no século 21. "Se alguma cidade tem essa chance, é Xangai", diz o professor Xiangming Chen, da Universidade de Fudan. "Mas a grandeza da cidade não pode ser alcançada só com obras civis. A questão é como reconstruir o senso comunitário que se perdeu com a demolição do velho e a construção do novo?"
Ninguém precisa lembrar a Jin de que as condições de sua vizinhança tradicional, ou lilong, pioraram muito desde que mudou para lá, ainda adolescente, em 1937. Na época, esse lilong - um dos milhares que abrigavam tradicionais casas chinesas com pátio interno, adaptadas para quarteirões com estreitas vias de inspiração europeia - fazia jus a seu nome: Baoxing Cun, ou "vila da riqueza e da prosperidade". Então, cada família ocupava uma casa, muitas vezes rodeadas de criados e puxadores de riquixá.Atualmente, oito famílias apertam-se na casa assobradada de Jin - uma em cada aposento. Não há água encanada. A cozinha resume-se ao fogão elétrico. Mesmo assim, quando o neto de Jin a convidou e ao avô a se mudarem para um moderno condomínio no subúrbio, ela recusou. "Em que outro lugar", pergunta Jin, "eu iria encontrar esse sentimento comunitário?"
O fato é que esses antigos bairros de Xangai estão desaparecendo. Em 1949, pelo menos três quartos dos xangaineses viviam em lilongs; hoje, resta apenas uma fração deles. Contudo, as vielas densamente habitadas do Baoxing Cun ainda evocam o sentimento comunitário que fez dos lilongs o berço da cultura xangainesa.
Hoje o papo bem-humorado das senhoras é ensombrecido por especulações. "Há rumores de que somos os próximos na fila da demolição", conta Jin. Para muitos xangaineses, as décadas de negligência oficial e a superpopulação transformaram a atmosfera de intimidade dos lilongs em algo asfixiante. Mas Jin teme que a demolição do Baoxing Cun leve à dispersão de suas amigas por subúrbios distantes. "Quem sabe quanto tempo ainda resta?", indaga ela.
Xangai empenhou-se mais que a maioria das cidades chinesas na proteção de seu patrimônio arquitetônico, preservando da destruição centenas de mansões e sedes de bancos erguidas antes da época comunista. No entanto, só uns poucos lilongs foram incluídos entre as áreas protegidas. Ruan Yisan, professor de urbanismo na Universidade Tongji, vem empreendendo uma campanha para salvar esses arquivos vivos da cultura da cidade. "As autoridades deveriam acabar com a pobreza, não com a história", diz ele. "Ninguém se opõe a que as pessoas vivam melhor, mas não deveríamos jogar fora o passado."
Por isso, foi uma surpresa para seus amigos quando Zhang se juntou à debandada rumo aos subúrbios. Milhões de xangaineses mudaram-se do centro da cidade nos últimos 15 anos, empurrados pela destruição dos lilongs e pelo sonho há muito reprimido de viver em locais mais espaçosos. A família de Zhang hoje mora em um apartamento de três quartos em um conjunto de arranha-céus com áreas gramadas impecáveis e um playground para sua filha de 7 anos, Jiazhen. Mas o condomínio fechado não tem nada da vida vibrante do lilong em que cresceu Zhang.A migração para os subúrbios mais do que triplicou o espaço de moradia per capita nos últimos 30 anos; mas isso vem dilacerando a cultura de Xangai. Os vizinhos raramente se conhecem, a despeito de iniciativas comunitárias, como clubes e parquinhos infantis. Nessa etapa, os vínculos mais fortes entre os moradores talvez sejam seus interesses como proprietários.
Uma das vítimas da debandada urbana pode ser o dialeto local de Xangai. Ele vem perdendo espaço desde a década de 1950, quando Pequim lançou uma campanha para unificar o uso da língua no país, difundindo uma versão padronizada do mandarim. Os lilongs contribuíam para a sobrevivência do dialeto, mas, nos subúrbios, as famílias mantêm poucos contatos sociais. Mesmo assim, muitos daqueles que se orgulham de ser xangaineses usam o dialeto como um código secreto para indicar que são legítimos nativos da cidade - o que lhes rende melhor tratamento no comércio local.Zhang, porém, logo se desencantou dos subúrbios. Agora a artista e sua família pretendem voltar ao centro da cidade. O motivo ostensivo é a matrícula de Jiazhen em uma escola particular, mas o fato é que Zhang também não quer privar a filha de um senso mais arraigado de identidade. "Todas as melhores lembranças que tenho vêm dos sons que ouvia aos 6 anos, quando acordava no lilong", conta ela. "As conversas na rua, os vendedores de camarão - a vida real."Chen Dandan passa os dias suspenso dezenas de metros acima do centro de Xangai como operário de arranha-céus. Mas esse migrante de 26 anos só sente vertigem quando volta para casa e passa pela rua Nanjing, que abriga as lojas mais sofisticadas da cidade. Ainda vestindo o sujo macacão azul e o capacete amarelo de segurança, Chen para diante de uma vitrine da Gucci e namora uma Ferrari vermelha cujo preço equivale a 80 vezes sua renda anual de 3 500 dólares. "Há muita gente com dinheiro", comenta, "mas somos nós que estamos construindo Xangai."Tal como no passado, o atual surto de crescimento da cidade não teria sido possível sem investimentos externos - e a abundante mão de obra de trabalhadores de outras regiões. Dos 20 milhões de habitantes, um terço é de migrantes sem permissão de residência. Muitos desses waidiren - forasteiros - vivem em comunidades bem organizadas. Outros, como Chen, são parte de uma população flutuante que forma o escalão mais baixo da sociedade xangainesa.No passado, a maioria dos migrantes tornava-se parte da cultura da cidade, vivendo nos lilongs e aprendendo o dialeto local. Hoje, porém, em uma época de comunicações e transportes facilitados, esse tipo de assimilação é raro. Chen trabalha em Xangai há dois anos, mas nunca considerou a possibilidade de ali viver definitivamente - tampouco aprendeu alguma palavra de xangainês. E envia a maior parte de seu salário para a família, na vizinha província de Jiangsu.Quando não está no abrigo subterrâneo tocando punk rock, Sammy costuma ficar empoleirada no 24o andar de uma nova torre residencial no centro da cidade, onde fica o apartamento que divide com quatro outras jovens solteiras. Em 1987, o ano em que ela nasceu, esse prédio de 28 andares se destacaria; hoje há centenas de outros mais altos. Pela janela, ela aponta, além do rio Huangpu, para a pirâmide invertida que vai ser o pavilhão principal da Expo 2010.A explosão urbana de Xangai vai continuar por muito tempo após o encerramento da exposição. Todas as demolições e construções ressaltam uma característica dos xangaineses: a obsessão pelo novo. As parceiras musicais de Sammy dizem que ela é "a típica jovem de Xangai", não só por se voltar para o exterior em suas preferências musicais (a roqueira Avril Lavigne), de moda (a revista japonesa Vivi) e de estilo de vida (a decoração de sua casa tem mais a ver com o seriado Friends que com Confúcio). Mas sobretudo pela facilidade desenvolta com que mescla as novas ideias a seu estilo xangainês.Quando recentemente a banda Black Luna fez fotos promocionais, as roqueiras usaram vestidos formais com babados, e Sammy apareceu com uma gargantilha da década de 1930. "Queríamos capturar o glamour da antiga Xangai", diz ela. Mas não por nostalgia. Era só o caso de uma banda xangainesa antenada revirando a história em busca de um detalhe estiloso. Nessa cidade que sempre se renova, o ritmo é tão acelerado que o passado pode acabar virando o futuro. E o velho pode ser renovado outra vez.
Revista National Geographic Brasil - março/2010

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Cores reais - A transformação da Groenlândia

A água do degelo escavou um cânion azul com 45 metros de profundidade.
O manto de gelo está derretendo - mas isso é motivo de otimismo para os groenlandeses.
Por Mark JenkinsFoto de James Balog

À primeira vista, a Groenlândia é uma imensidão de brancura ofuscante. No entanto, quando o helicóptero em que estou sobrevoa em baixa altitude a ilha, é impossível deixar de notar as cores. Por quilômetros sem fim, as faixas azuladas da água do degelo acompanham os limites do manto de gelo. Campos esbranquiçados estão agora entremeados de rios sinuosos, entalhados por fendas e salpicados de lagos. Também há o gelo que não parece branco nem azul, mas antes pardo e até preto - escurecido por uma substância conhecida como crioconita. Essas partículas de aparência turva são o principal tema de investigação dos meus quatro companheiros: o fotógrafo James Balog e seu assistente, Adam LeWinter, o geofísico Marco Tedesco e o doutorando Nick Steiner, ambos da faculdade City College, de Nova York.
Balog fotografa o gelo - e a ausência dele. Em 2006, ele fundou o projeto Extreme Ice Survey (EIS, "sondagem extrema do gelo") para "criar uma memória de coisas que estão desaparecendo", diz. O EIS já instalou mais de 35 câmeras automáticas, alimentadas por painéis solares e à prova de nevascas, em geleiras no Alasca, em Montana, na Islândia e na Groenlândia - todas elas captando imagens dia após dia, de 4 mil a 12 mil fotos por ano, como "olhos observando o mundo lá fora para nós", comenta Balog.
Montamos o nosso acampamento no interior, a 70 quilômetros do vilarejo de Ilulissat, na costa oeste da Groenlândia, em um trecho da zona de degelo na qual a remoção das camadas superiores do manto de gelo deixa exposto o chamado "gelo azul". Trata-se de um gelo antigo e de tal modo compactado que grande parte das bolhas de ar - que normalmente refletem a luz e conferem ao gelo a aparência leitosa ou branca - foi eliminada. Com uma quantidade menor dessas bolhas, o gelo absorve a luz da extremidade vermelha do espectro, refletindo a parte azulada. Conforme os efeitos provocados pela luz solar, o gelo azul também pode parecer branco.O acampamento está junto à margem de um imenso lago formado pela água do degelo. Tedesco e Steiner investigam a sua profundidade para comparar essas informações com as sondagens, feitas por satélites, da profundeza de outros lagos supraglaciais na Groenlândia. Toda manhã, eles lançam à água um pequeno barco para a coleta de dados. É um barco em miniatura, controlado por rádio e equipado com sonar, espectrômetro conectado aos notebooks dos cientistas, GPS, termômetro e uma câmera submarina.
Os lagos de degelo da Groenlândia costumam esvaziar de maneira inesperada e rápida. Por isso, Tedesco optou por um barco de pesquisa não tripulado. Certa vez, Balog viu um lago desses esvaziar da noite para o dia. A base de um dreno de geleira - um canal vertical no gelo - se rompeu e deu vazão a toda a água acumulada no lago. Já em 2006, uma equipe de glaciólogos conseguiu registrar a drenagem de um lago supraglacial com 5 mil metros quadrados. Mais de 40 bilhões de litros de água sumiram por um dreno de geleira em apenas 84 minutos, num ritmo mais rápido do que a vazão das cataratas do Niágara.
O lago que Tedesco está estudando tem um canal de escoamento que deve levar a um sôfrego dreno de geleira, que LeWinter e eu decidimos localizar. Equipados com piquetas, parafusos de gelo e cordas, nos pusemos a caminho. Mal havíamos percorrido 400 metros quando topamos com buracos no gelo. Como suas bordas estava todas muito próximas umas das outras, fomos obrigados a saltar por cima deles, de uma borda aguçada para a outra - mais ou menos como brincar de pula-sela sobre lâminas de navalha.
Tentamos ainda uma rota alternativa, seguindo uma crista de gelo paralela ao canal. Dessa vez, avançamos bastante e percorremos alguns quilômetros sobre o manto de gelo. Na caminhada, não conseguimos localizar o dreno de geleira, mas notamos um aspecto intrigante: no início da jornada, os buracos que tivemos de saltar eram circulares e isolados, mas, no trajeto de volta, apenas meio dia depois, o derretimento é tão acelerado que os buracos já estão interligados por córregos de correnteza rápida.
De volta ao acampamento, à noite, descobrimos o que Tedesco e Steiner haviam constatado a respeito do fundo do lago: ele estava todo mosqueado de crioconita, que surge na forma de partículas disseminadas pelo vento sobre o gelo. Ela é composta de poeira mineral recolhida de locais tão distantes quanto os desertos da Ásia Central, de partículas de erupções vulcânicas e de fuligem. Esta, por sua vez, vem de incêndios provocados pelo homem e dos naturais, de motores a diesel e de usinas termelétricas. A crioconita não é um fenômeno novo: em 1870, o explorador ártico Nils A. E. Nordenskiöld descobriu e batizou esse fino sedimento escuro em uma visita ao manto de gelo da Groenlândia. Desde então, as atividades humanas aumentaram muito a geração de crioconita, que agora adquiriu maior importância devido ao aquecimento global.O geofísico groenlandês Carl Egede Bøggild dedicou os últimos 28 anos ao estudo do manto de gelo. Recentemente, ele concentrou suas pesquisas na crioconita. "Mesmo que ela seja composta de menos de 5% de fuligem", comenta ele, "é esta que a torna negra." O tom escuro gradualmente reduz o albedo, a proporção de luz refletida pelo gelo, e isso aumenta a absorção de calor - o que por sua vez intensifica o derretimento.Todos os anos, cai neve nova sobre o manto de gelo, salpicando-o com crioconita. À medida que se consolida, a neve absorve essa poeira. Quando os verões são especialmente quentes, como nos últimos anos, há o derretimento de várias camadas de gelo, liberando quantidades adicionais de crioconita, o que resulta em uma camada mais escura e concentrada dessa substância na superfície. "O que temos é um ciclo vicioso em constante aceleração", diz Bøggild. "É como estender um coberto escuro sobre o gelo."Mesmo durante a nossa breve expedição na Groenlândia, foi possível notar esse efeito. Em apenas uma semana, o derretimento do gelo transformou nosso acampamento em um lodaçal escorregadio. Em algum ponto distante dali, o dreno de geleira que havíamos procurado sugou a água do lago. As câmeras automáticas de Balog captaram todo o processo. "Elas estão registrando o pulso do planeta", comenta ele.Antes do término da expedição, Balog me convence a descer por um dreno de geleira bem ao lado do acampamento - um dos maiores que a equipe do EIS encontrou em suas 11 expedições ao território. Ele é largo o bastante para sugar um trem de carga - e certamente o suficiente para me engolir para sempre. Mesmo assim, não consigo resistir a fazer rapel na bocarra desse abismo, chamado por Balog de "a Fera".Preso a cordas cobertas de gelo, começo a lenta descida. Trinta metros abaixo, no imenso poço, circundado por paredões de gelo azul, fico empapado com os gélidos borrifos. Acima de mim, o céu ártico, muito azul, está emoldurado em pingentes de gelo denteados com a altura de três andares. Lá embaixo, desaparecendo no fundo do abismo glacial, está a cascata trovejante que perfurou esse poço. Natureza bruta.Os cientistas lançaram patinhos de borracha amarelos, esferas com sensores e enormes quantidades de corantes nesses drenos gigantescos com o objetivo de identificar o percurso que fazem e descobrir em que ponto do litoral da Groenlândia eles desembocam. Algumas das esferas e dos traços de corante já foram localizados, mas todos os patinhos sumiram. Embora tentado a descer ainda mais, e continuar a investigar, penso melhor e decido retornar. Depois de 20 minutos pendurado dentro do abismo, subo pela parede, de volta à imensidão azul do Ártico.

National Geographic Brasil - Junho 2010